15 Março 2022
Quando as pessoas usam a frase “odeie o pecado, ame o pecador” exclusivamente ao falar sobre católicos LGBTQ, elas os estão destacando como se fossem as únicas pessoas cujas vidas não estão em conformidade com os ensinamentos da Igreja. Pior ainda, o “pecado” em que as pessoas se concentram é o modo como elas se amam.
O comentário é do jesuíta estadunidense James Martin, SJ, colunista da revista America, consultor do Dicastério para a Comunicação do Vaticano e autor, em português, de “Jesus: a peregrinação” (Ed. Harper Collins) e “A sabedoria dos jesuítas para (quase) tudo” (Ed. Sextante).
O artigo é publicado por America, 14-03-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Não tenho certeza de onde vem a expressão popular “odeie o pecado, ame o pecador”. Pode derivar da Carta 211 de Santo Agostinho, escrita em 424 d.C., na qual ele diz: “Cum dilectione hominum et odio vitiorum”, ou “com amor pela humanidade e ódio pelos pecados”.
Uma referência mais contemporânea é Mahatma Gandhi, que escreveu em sua autobiografia: “Odiar o pecado e não o pecador é um preceito que, embora fácil de entender, raramente é praticado, e é por isso que o veneno do ódio se espalha pelo mundo”.
A frase não está na Bíblia, embora Jesus nos peça nos Evangelhos, de várias maneiras, que nos amemos uns aos outros e frequentemente nos admoesta contra o pecado. Talvez o análogo mais próximo do ditado contemporâneo seja encontrado na Carta de São Judas, que diz: “Procurai convencer os que vacilam, salvai os outros, arrancando-os do fogo” (1,22-23).
Mas também pode estar na Bíblia, de tantas vezes que é usado. É um ditado quase canônico, ao lado de “Deus ajuda quem se ajuda”, como um versículo que as pessoas pensam que está – ou deveria estar – na Bíblia.
“Odeie o pecado, ame o pecador” faz muito sentido. Como cristãos, somos chamados a amar a todos, até aos nossos inimigos, disse Jesus, que perdoou seus algozes na cruz. Assim, devemos amar a todos, e isso inclui os pecadores.
Jesus demonstrou esse amor repetidamente: ele foi frequentemente criticado por comer com “pecadores e cobradores de impostos”, quando a “comunhão à mesa” era um sinal de aceitação. Ao mesmo tempo, evitar o pecado estava no cerne do ministério de Jesus. “Vai e não peques mais”, diz ele à mulher pega em adultério (Jo 8,1-11).
O ditado também promove uma saudável demarcação de fronteira entre a pessoa e o ato. Podemos amar e reverenciar uma pessoa que pode ter cometido pecados hediondos. Helen Prejean, CSJ, que ministra para presos no corredor da morte, costuma dizer: “Uma pessoa é mais do que a pior coisa que ela já tenha feito”. Um elemento do ditado “odeie o pecado, ame o pecador” está em operação aí.
O problema com esse ditado aparentemente compassivo é que hoje ele é aplicado quase exclusivamente a um único grupo: as pessoas LGBTQ. O pensamento é que podemos amar as pessoas LGBTQ desde que condenemos as suas ações – incluindo as relações entre pessoas do mesmo sexo e o casamento entre pessoas do mesmo sexo – e rotulemos todas elas como “pecadoras”.
Com essa aplicação seletiva, o ditado é usado como uma arma contra as pessoas LGBTQ, porque efetivamente reduz as pessoas LGBTQ a “pecadoras”, acima e antes de tudo. É claro que todos somos, de uma forma ou de outra, pecadores; mas o uso do termo em referência às pessoas LGBTQ pode ser particularmente cruel, pois não há nenhum outro grupo ao qual esse termo seja aplicado com tanta regularidade e de forma tão reflexiva e tão implacável.
Aqui está um experimento mental que eu costumo usar para ajudar as pessoas a entenderem isso. Imagine se eu lhe dissesse que fui convidado para dar uma palestra para estudantes universitários — como sempre ocorre. Como a maioria das pessoas sabe, muitos universitários são solteiros e sexualmente ativos e, portanto, não estão em conformidade com o ensino da Igreja, que proíbe qualquer atividade sexual fora do casamento. Os números estão em declínio, mas um estudo recente mostrou que 66% dos universitários fizeram sexo no ano passado. Assim, a maioria deles é “pecadora”.
Ao ouvir que eu ia falar em um campus universitário, você diria: “Bem, odeie o pecado, ame o pecador”? Você me castigaria por falar com um grupo de “pecadores”? Provavelmente não, já que ninguém nunca me disse isso nas centenas de vezes em que falei nos campi universitários. Ninguém jamais usou uma linguagem remotamente parecida com essa para me descrever os universitários.
Da mesma forma, a maioria dos casais católicos hoje em dia (89%) acredita que a contracepção não é um problema moral. Muitos usam o controle de natalidade e, portanto, de acordo com o ensino da igreja, estão pecando. Mas, se eu lhe dissesse que estou ministrando um retiro para casais, você diria: “Odeie o pecado, ame o pecador”? Provavelmente não, porque, de novo, nos meus 30 anos como jesuíta ou nos meus 20 anos como padre, nunca ouvi ninguém dizer isso em relação ao contexto dos casais. Nem uma única vez.
Então, em relação a quem essa afirmação é mais usada? Quem é mais regularmente rotulado como “pecador” em um mundo de imoralidade de todos os tipos – ganância, crueldade, mentira, egoísmo, racismo, belicismo, insensibilidade para com os pobres e assim por diante? As pessoas LGBTQ.
É difícil não concluir que, quando as pessoas usam a frase “odeie o pecado, ame o pecador” exclusivamente ao falar sobre católicos LGBTQ, elas os estão destacando como se fossem as únicas pessoas cujas vidas não estão em conformidade com os ensinamentos da Igreja. Pior ainda, o “pecado” em que as pessoas se concentram é o modo como elas se amam.
William A. Barry, SJ, escritor espiritual e psicólogo, me disse uma vez que isso é especialmente prejudicial, porque o modo como amamos influencia quase todos os aspectos da nossa vida emocional, mental e espiritual. Dizer que “o seu amor é pecado” é um ataque a uma parte do eu mais profundo de uma pessoa. Nossos eus são uma mistura de mente, corpo e coração. Dizer que “o seu amor é pecado” atinge cada parte da pessoa humana.
E, infelizmente, na maioria das vezes, eu ouço a frase “odeie o pecado, ame o pecador” de pessoas que absolutamente parecem não amar as pessoas LGBTQ.
No ano passado, eu celebrei uma missa em memória do meu amigo Carlos, que havia sido casado com seu marido Jim por muitos anos e estava com ele há mais de 30 anos. Carlos era um pilar da comunidade da Igreja de Santo Inácio de Loyola em Nova York e atuava como ministro eucarístico, leitor e diretor espiritual, além do seu trabalho diurno como capelão do Hospital Memorial Sloan-Kettering.
Depois que Carlos foi diagnosticado com câncer, seu marido, Jim, cuidou dele com amor, acompanhando-o em todas as consultas médicas, passando por grandes cirurgias, por rodadas de quimioterapia e radiação, até a sua morte.
Embora a missa tenha ocorrido muitos meses após a morte de Carlos, a igreja estava lotada. Era um sinal do amor que a paróquia tinha por ele e por Jim – assim como do amor que ambos tinham demonstrado à paróquia.
Algumas semanas depois, eu estava falando sobre as questões LGBTQ em uma videochamada com outra paróquia. Eu contei a história de Carlos e Jim como um exemplo de vida de muitas pessoas LGBTQ. Uma pessoa disse: “Bem, odeie o pecado, ame o pecador, certo, padre?”. Esse homem parecia perder o ponto-chave da história, ou seja, que precisamos ouvir as experiências das pessoas LGBTQ. Essa observação ignorava as suas vidas cheias de riquezas, reduzia 30 anos de companheirismo a um slogan e categorizava os dois como “pecadores”, quando, de novo, todos somos pecadores. Eu pensei na frase de Jesus: “Você ainda não entendeu?”.
Da próxima vez que você estiver inclinado a dizer: “Odeie o pecado, ame o pecador”, você pode se fazer várias perguntas. Primeiro, estou usando esse slogan apenas para as pessoas LGBTQ? Segundo, em que aspectos as suas vidas expressam não pecado, mas amor? E, finalmente, o que eu posso aprender sobre Deus com as pessoas que eu estou chamando de pecadoras?
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É realmente possível odiar o pecado e amar o pecador? Artigo de James Martin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU